O que foi dito

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Isolação

“Isolation is, in fact, the only thing i require” - Despised Icon




Acordo a meio da noite e sinto os lençóis todos molhados. Mijei outra vez na cama. Estes pesadelos andam a matar-me. Quase como se fossem reais.

Encontro o Zé enquanto vou a caminho do trabalho e ele está, como de costume, impecável. O Zé tem a minha idade, mas, ao contrário de mim, que ando curvado, o porte dele é o porte de um atleta de competição. A maneira como o fato de linho lhe assenta nos ombros é um sinal da confiança que emana dele. Se houvesse uma água de colónia que fosse baseada no seu cheiro, o nome a dar-lhe seria certamente Confiança. Com C maiúsculo. Ou melhor ainda: Arrogante. Com A grande e a negrito. Ele sorri-me com o seu sorriso perfeito e eu ouço o anúncio na minha cabeça:

Compre já Arrogante. O perfume que só os verdadeiros homens usam.

Ás vezes penso como é que um gajo destes se pode chamar Zé.


Entramos os dois juntos na empresa e ele capta logo a atenção geral, com o seu andar controlado e casual. Um descontraído chic, poderia dizer-se do estilo todo deste gajo. Ele acena sorrisos e sorri acenos a todos e eu penso que apertei demasiado a gravata. O solo à minha volta anda à roda e eu sinto o suor a colar-me a pele. Ouço vagamente alguém a perguntar se me estou a sentir bem e a seguir bato com a cara no chão. Pela terceira vez esta semana.

Estou no médico, mas não por querer verdadeiramente saber o que se passa. Estou no médico porque abri o lábio e ele está a coser-me a ferida. Enquanto sinto a linha a unir-me a carne, enquanto sinto a pele a esconder a carne viva, outra vez, só penso, só ouço, só vejo um copo de whisky. E o riso do Zé.


Já não me dou ao trabalho de mudar os lençóis sempre que urino neles. Muitas vezes ponho apenas uma tolha de cara por cima da zona que se molhou, e durmo assim, junto do que há de melhor em mim. O meu próprio mijo. O que há de mais quente em mim.
Há garrafas vazias e garrafas partidas e garrafas semi-bebidas com beatas de cigarros lá dentro por todo o quarto, por toda a casa. Há louça suja espalhada e muita desta louça já tem comida podre ou mesmo larvas a mexerem-se lá dentro. A minha companhia em casa são estas larvas e as moscas — não poderia desejar por melhor.
A única zona que mantenho impecavelmente limpa é o armário. No armário é onde tenho os meus fatos. Que estão sempre, eles também, impecavelmente limpos.


Não sei porque mas aceitei ir sair com uns conhecidos, e eles dizem, quando entro no carro em que me vêm buscar, que vamos às putas. Se o pânico tivesse um número de telefone eu ligava-lhe agora.
Eles riem-se e eu não percebo se estão a gozar comigo ou não, mas vou o caminho todo a pensar se estão a gozar comigo e rio-me quando um diz uma piada e outro pergunta-me pela Marina e eu não sei quem é a Marina mas digo “oh, está bem” e ele diz qualquer coisa e eu estou a pensar porque é que tive que ficar sentado no meio entre estes dois calmeirões, com caras de actores de cinema, e só me apetece gritar e gritar e gritar. E não sei porque é que trouxe a gravata e começo a desapertá-la e um deles diz “porqueéquetrouxesteagravata” tão rápido que eu não percebo e está tudo a andar à roda e eu só me apetece gritar e gritar e gritar. E estou quase a fazê-lo quando um deles diz:
—Chegámos.


Estamos numa casa de meninas, e eu já vou no sétimo copo de whisky. Estou-me a rir e a brincar, e até digo uma piada ou outra, e a minha cabeça só pensa: esta tudo a olhar para mim. Fumo um cigarro, dois, três, quatro, só mesmo para ter alguma coisa que fazer.


Vamos para outro bar e o ambiente é escuro e a música toca alto. Seria perfeito, não fosse estar cheio de gente. Os corpos dançam, roçam uns nos outros e o ar cheira fortemente a fumo e suor. Eu enfio-me no balcão e apesar de saber que ninguém está a olhar para mim, sei que todos estão a olhar para mim. Uma rapariga despeja um pouco de vodka em cima do meu fato e eu por pouco não lhe parti o meu copo na cabeça. Só não o fiz porque sei que todos deixariam de fingir que não estão a olhar para mim.

Já vou no décimo sétimo ou vigésimo terceiro whisky, não sei bem. Acho que já bebi um pouco de vodka também Fumei à vontade dois maço de tabaco. Nas últimas duas horas as minhas únicas palavras foram: “mais um”. Ou: “outro whisky”. Nem está a correr mal.

Quando vejo o Zé a vir na minha direcção já é tarde de mais para fugir para outro lado. Ele diz-me “então pá” e eu reparo como até a bebedeira dele é elegante. Digo-lhe que tenho que ir à casa de banho, porque só me apetece rasgar-lhe a cara toda, partir um copo e com um caco, desfazer-lhe aquele nariz perfeito, arrancar-lhe aqueles olhos verdes, macerar-lhe as maçãs do rosto, fazer-lhe um sorriso de orelha a orelha. Como eu amo este gajo. Como eu detesto este gajo. Bebo mais dois shots e fujo.

Estou com a cabeça enfiada na sanita, a vomitar o jantar, e tenho plena consciência que não é do álcool. Também tenho plena consciência que não pertenço aqui.

Quando me estou a preparar para ir embora, aparece-me este gajo horrível, com uma cicatriz desde o olho até ao queixo. A cicatriz é tão profunda e ele também é cego desse olho. Os lábios estão deformados, parece que foram mergulhados em ácido ou algo do género. Este gajo está-me a meter um nojo do caralho porque não para de olhar para mim como se eu fosse a coisa mais feia que ele já viu no mundo, como se eu fosse a mistura entre um papa-formigas e um louva-a-deus. Logo este gajo, com este caretão. Começo a insultá-lo e à mãe dele e ele responde-me. O meu medo e falta de confiança só alimentam mais a adrenalina que flui dentro de mim. Começo a esmurrá-lo, deformando mais ainda aquela cara de animal doente. Esmurro-o até os nós dos meus dedos sangrarem, até as minhas mãos sangrarem todas. Dou-lhe cabeçadas com tanta força que a minha testa já sangra abundantemente. Cada pedaço de vidro que se me espeta na mão é um pedaço da minha alma que morre. Cada pedaço de espelho que se desfaz é uma aproximação à única coisa que eu exijo. Isolação.

Sem comentários:

Enviar um comentário