O que foi dito

quarta-feira, 14 de abril de 2010

É a vida...

As minhas pernas tremiam enquanto andava. Acabava de receber a noticia de que ia morrer. O médico disse-me:
você tem três meses de vida
e o que eu ouvi foi:

vida, vida, vida, vida, vida

como o bip de uma máquina, daquelas que contam os últimos segundos de uma vida. Daquelas que se silenciam com o nascer de uma morte. Eu só conseguia pensar na morte que me esperava e na vida que nunca tive no sentido figurado e que agora deixaria de ter no sentido literal. Só pensava em todos os segundos em que apenas respirei. Em todas as coisas que não fiz porque não pude e porque não quis. Todas as conversas que tive e que foram na verdade monólogos, quer da minha parte, quer da parte de quem supostamente falava comigo.
Olho para o rio e ele parece disposto a ouvir-me. Três meses é demasiado tempo para pensar no que poderia ter sido, e pouco para de facto sê-lo. A frieza da água pela primeira vez aqueceu-me os ossos, como se esta matasse o vírus que me matava a mim.

No dia seguinte a minha mãe receberia um telefonema a avisar que tinha havido um erro nos exames, e que estava tudo bem comigo.

E pela primeira vez está.

Abri os olhos

Abri os olhos e percebi que estava morto. Olhei à minha volta e vi o meu corpo estendido, na cama, imóvel. Vi o meu corpo e soube que o meu corpo já não era meu, já não o possui-a. Não sei sequer se alguma vez este corpo foi meu.

Vejo tudo desfocado, com a neblina que só um estado avançado de cataractas te pode oferecer.

Não sei se morri ou se me mataram, mas depois de morto isso é indiferente. Reparo que os olhos do meu anterior eu ainda estão abertos, a boca aberta também, numa imagem um pouco absurda, mas que não me dá vontade alguma de rir. Olho para esta cara e para este olhos e

A neblina desaparece e a claridade desaparece e este momento desaparece

estou a olhar para mim há três dias atrás, sentado no café. Joga-se cartas e alguém pede uma mini, e eu tenho o Ás de trunfo na mão. No entanto tenho uma manilha seca. Faço sinal ao meu colega e ele diz-me que não tem o Ás desse naipe. Acendo um cigarro.

Tenho 8 anos e a minha mãe não me dá o Action Man que eu quero, e eu faço birra, e choro

Caem-me lágrimas, como se eu as pudesse verter

e choro e choro. Ela diz que não vai dar e eu só penso que a minha vida é tão injusta e ela não é mais minha mãe e eu só quero morrer.


o padre pergunta-me se eu aceito a Isabel para ser a minha mulher, na pobreza e na riqueza, na saúde e na doença, até que a morte nos separe. Eu olho para trás e a minha mãe está a sorrir e quase a chorar, e está tão feliz, tão feliz, tão feliz. E o vazio dentro de mim diz: Sim.

o meu parceiro joga o Ás de paus, e como eu estou seco a paus, jogo a manilha. Às vezes consegues safar uma manilha. Alguém fala da bebedeira que tinha no sábado passado.


estou no trabalho e uma colega fala-me da “sopinha que fez ontem”, da forma como “cortou uma cenourinha”, descascou “uma cebolinha”, e a certo ponto perco-me, mas tenho a certeza de que ela ainda está a falar de legumes. Aceno-lhe que sim, murmuro “eu gosto de sopa”, isto tudo enquanto faço o esforço de olhar para ela. A única razão pela qual ainda consigo manter o meu olhar na sua cara, enquanto ela fala de sopa e puré de batata e arrozinho, é porque os meus olhos

Estão desfocados. Com a neblina que só um estado avançado de cataractas te pode oferecer.

Vejo a Isabel entrar no quarto e chamar por mim, ela diz que o pequeno almoço está feito. É domingo de certeza. Só ao domingo é que ela prepara pequeno almoço para nós. Ela pensa que isso é romântico e eu penso que não me importava muito com isso, desde que comesse.

Os gritos dela, ao fitarem os meus antigos olhos, vítreos, fazem-me acreditar no amor que ela sentia por mim. Sei que se a situação fosse inversa, eu manteria toda a calma.

O meu ex-corpo na morgue e o médico legista e o médico estagiário olham para dentro do que eu já fui, e tiram orgãos, e fazem testes, e esvaziam o conteúdo das tripas e esvaziam o que eu já fui. E eu identifico-me com este corpo, vazio.

A autopsia é inconclusiva. Fecham o torso em Y, cosem a pele, a carne. A agulha entra e sai da pele, da carne. Este corpo não é mais do que um desperdício de linhas, de pele, de carne. Este enorme urso de peluche está prestes a ser enterrado.

Os meus pais e a minha mulher (será que ainda são meus pais e minha mulher, depois da minha morte?) choram e uma enorme fila de pessoas cumprimenta-os, diz-lhes que lamentam muito, dão-lhes pêsames. Aposto que isso faz toda a diferença para eles. Vejo o meu tio paterno, com quem deixei de falar há 6 anos, aquando da morte do meu avó. Vejo uma ex-namorada, a qual traí, e que me disse que me odiava e que esperava que eu morresse. Vejo pessoas que não conheço, que sei que os meus pais não conhecem, que sei que a minha mulher não conhece. Todas elas lamentam muito a minha morte. Todas elas à noite já não se lembrarão de mim.

Uns amigos meus falam de como eu era boa pessoa, um bom amigo. Dizem que são sempre os melhores que partem. Um diz:
-Se bem que estava sempre a trair a mulher.
- É. Bem boa a mulher dele.
- Pois é. Eh pah, mas um gajo que traí tantas vezes a mulher não pode ser assim tão boa pessoa.
- Pois. Se calhar tens razão. Pah, eu nem sequer era assim tão amigo dele. Tomava-mos um cafézinho às vezes.
- Pois, eu também
- Vamos embora? Daqui a pouco começa o Benfica.
- 'Bora.


O caixão é aberto, e lá está o corpo, sereno, com um estranho sorriso nos lábios e os olhos fechados

A névoa dissipa-se

o funeral do meu avó é a recordação mais triste que tenho. Eu gostava muito do meu avó e custou-me muito ver o meu tio tão preocupado com as partilhas. Nessa altura pensei: “nunca mais lhe falo”.
Chorei muito ao ver o meu avó, pela última vez, deitado no seu caixão, com um sorriso nos lábios. A única pessoa de quem eu realmente gostei foi do meu avó, porque ele me compreendia. Na altura assustei-me com aquele sorriso, mas agora percebo

A névoa retorna

o que os médicos não perceberam. Eu fui o segundo caso na minha família em que a autopsia ao corpo foi inconclusiva. O primeiro foi o meu avó.

e o corpo afinal é meu

Eles não perceberam que o cansaço foi a causa da morte.

o meu sorriso torna-se uma gargalhada ao ouvir a terra cair por cima da tampa fechada do caixão.

Fechei os olhos e percebi que estava vivo.

Isolação

“Isolation is, in fact, the only thing i require” - Despised Icon




Acordo a meio da noite e sinto os lençóis todos molhados. Mijei outra vez na cama. Estes pesadelos andam a matar-me. Quase como se fossem reais.

Encontro o Zé enquanto vou a caminho do trabalho e ele está, como de costume, impecável. O Zé tem a minha idade, mas, ao contrário de mim, que ando curvado, o porte dele é o porte de um atleta de competição. A maneira como o fato de linho lhe assenta nos ombros é um sinal da confiança que emana dele. Se houvesse uma água de colónia que fosse baseada no seu cheiro, o nome a dar-lhe seria certamente Confiança. Com C maiúsculo. Ou melhor ainda: Arrogante. Com A grande e a negrito. Ele sorri-me com o seu sorriso perfeito e eu ouço o anúncio na minha cabeça:

Compre já Arrogante. O perfume que só os verdadeiros homens usam.

Ás vezes penso como é que um gajo destes se pode chamar Zé.


Entramos os dois juntos na empresa e ele capta logo a atenção geral, com o seu andar controlado e casual. Um descontraído chic, poderia dizer-se do estilo todo deste gajo. Ele acena sorrisos e sorri acenos a todos e eu penso que apertei demasiado a gravata. O solo à minha volta anda à roda e eu sinto o suor a colar-me a pele. Ouço vagamente alguém a perguntar se me estou a sentir bem e a seguir bato com a cara no chão. Pela terceira vez esta semana.

Estou no médico, mas não por querer verdadeiramente saber o que se passa. Estou no médico porque abri o lábio e ele está a coser-me a ferida. Enquanto sinto a linha a unir-me a carne, enquanto sinto a pele a esconder a carne viva, outra vez, só penso, só ouço, só vejo um copo de whisky. E o riso do Zé.


Já não me dou ao trabalho de mudar os lençóis sempre que urino neles. Muitas vezes ponho apenas uma tolha de cara por cima da zona que se molhou, e durmo assim, junto do que há de melhor em mim. O meu próprio mijo. O que há de mais quente em mim.
Há garrafas vazias e garrafas partidas e garrafas semi-bebidas com beatas de cigarros lá dentro por todo o quarto, por toda a casa. Há louça suja espalhada e muita desta louça já tem comida podre ou mesmo larvas a mexerem-se lá dentro. A minha companhia em casa são estas larvas e as moscas — não poderia desejar por melhor.
A única zona que mantenho impecavelmente limpa é o armário. No armário é onde tenho os meus fatos. Que estão sempre, eles também, impecavelmente limpos.


Não sei porque mas aceitei ir sair com uns conhecidos, e eles dizem, quando entro no carro em que me vêm buscar, que vamos às putas. Se o pânico tivesse um número de telefone eu ligava-lhe agora.
Eles riem-se e eu não percebo se estão a gozar comigo ou não, mas vou o caminho todo a pensar se estão a gozar comigo e rio-me quando um diz uma piada e outro pergunta-me pela Marina e eu não sei quem é a Marina mas digo “oh, está bem” e ele diz qualquer coisa e eu estou a pensar porque é que tive que ficar sentado no meio entre estes dois calmeirões, com caras de actores de cinema, e só me apetece gritar e gritar e gritar. E não sei porque é que trouxe a gravata e começo a desapertá-la e um deles diz “porqueéquetrouxesteagravata” tão rápido que eu não percebo e está tudo a andar à roda e eu só me apetece gritar e gritar e gritar. E estou quase a fazê-lo quando um deles diz:
—Chegámos.


Estamos numa casa de meninas, e eu já vou no sétimo copo de whisky. Estou-me a rir e a brincar, e até digo uma piada ou outra, e a minha cabeça só pensa: esta tudo a olhar para mim. Fumo um cigarro, dois, três, quatro, só mesmo para ter alguma coisa que fazer.


Vamos para outro bar e o ambiente é escuro e a música toca alto. Seria perfeito, não fosse estar cheio de gente. Os corpos dançam, roçam uns nos outros e o ar cheira fortemente a fumo e suor. Eu enfio-me no balcão e apesar de saber que ninguém está a olhar para mim, sei que todos estão a olhar para mim. Uma rapariga despeja um pouco de vodka em cima do meu fato e eu por pouco não lhe parti o meu copo na cabeça. Só não o fiz porque sei que todos deixariam de fingir que não estão a olhar para mim.

Já vou no décimo sétimo ou vigésimo terceiro whisky, não sei bem. Acho que já bebi um pouco de vodka também Fumei à vontade dois maço de tabaco. Nas últimas duas horas as minhas únicas palavras foram: “mais um”. Ou: “outro whisky”. Nem está a correr mal.

Quando vejo o Zé a vir na minha direcção já é tarde de mais para fugir para outro lado. Ele diz-me “então pá” e eu reparo como até a bebedeira dele é elegante. Digo-lhe que tenho que ir à casa de banho, porque só me apetece rasgar-lhe a cara toda, partir um copo e com um caco, desfazer-lhe aquele nariz perfeito, arrancar-lhe aqueles olhos verdes, macerar-lhe as maçãs do rosto, fazer-lhe um sorriso de orelha a orelha. Como eu amo este gajo. Como eu detesto este gajo. Bebo mais dois shots e fujo.

Estou com a cabeça enfiada na sanita, a vomitar o jantar, e tenho plena consciência que não é do álcool. Também tenho plena consciência que não pertenço aqui.

Quando me estou a preparar para ir embora, aparece-me este gajo horrível, com uma cicatriz desde o olho até ao queixo. A cicatriz é tão profunda e ele também é cego desse olho. Os lábios estão deformados, parece que foram mergulhados em ácido ou algo do género. Este gajo está-me a meter um nojo do caralho porque não para de olhar para mim como se eu fosse a coisa mais feia que ele já viu no mundo, como se eu fosse a mistura entre um papa-formigas e um louva-a-deus. Logo este gajo, com este caretão. Começo a insultá-lo e à mãe dele e ele responde-me. O meu medo e falta de confiança só alimentam mais a adrenalina que flui dentro de mim. Começo a esmurrá-lo, deformando mais ainda aquela cara de animal doente. Esmurro-o até os nós dos meus dedos sangrarem, até as minhas mãos sangrarem todas. Dou-lhe cabeçadas com tanta força que a minha testa já sangra abundantemente. Cada pedaço de vidro que se me espeta na mão é um pedaço da minha alma que morre. Cada pedaço de espelho que se desfaz é uma aproximação à única coisa que eu exijo. Isolação.

Hoje Escolhi

Hoje escolhi não te amar.
Olhei-te na cara
e neguei a voz.

Profunda.

Dentro de mim.

Há escolhas impossíveis de fazer.

Todos os Homens

Todos os homens,
adornados pelo
seu nome,
reunidos à volta da fogueira.

O crepitar das chamas
e todos os gritos.
Todos os nomes
gitados pelo som
da madeira a arder.
O fumo perverso
no ar.

O fumo é espesso
a terra é espessa
a mente é espessa.

Todos os homens,
reunidos à volta da fogueira,
adornados pela perversão.

O doce cheiro do suor
e da madeira.

O meu nome e o nosso nome.

Todos os homens,
um grita, outro empurra, outro cai

outro cai, outro empurra, outro grita.

Todos os homens,
reunidos dentro da fogueira,
devorados pelos gritos.

E pelos nomes.

O doce cheiro da carne queimada,
perversa.

Todos os gritos dentro de mim.

Apoplexia

Vozes falam comigo
e dizem-me:
tudo vai ficar melhor.

Uma névoa, um mar
branco e ácido
devora-me por dentro.

Os meus lábios
mexem-se
e dizem:
nada.

A minha mente
pensa
e é:
nada.

Uma estrada vazia.
À minha frente.
Um sepulcro.

Praia

Os dois na praia,
deitados na areia.
Molhada.
E o teu corpo.
O mar apaga um sulco.
Eu abraço o mar.

Funeral na vila

O Bernardo encontra-me na rua e diz-me que a Joana morreu. Ele diz-me que o funeral é no dia
seguinte e que a família dela vai estar na capela da vila hoje, até às onze da noite. Ele diz-me que vai lá agora, falar com o Senhor João e a Dona Carla, dizer que lamenta muito. Ele diz-me isto tudo e as lágrimas vêem-lhe aos olhos. Eu abraço-o, sem saber se é isso que é suposto fazer e as lágrimas vêem-me aos olhos, não porque eu gostasse muito da Joana. Eu só lamento é toda esta conversa.

Chego a casa e a minha mãe pergunta-me se vou à capela e eu só tenho vontade de lhe dar um murro, mas a custo digo que não, hoje não. Finjo que não vejo a minha namorada sentada no sofá da sala e vou a correr para a casa de banho, onde me sento na sanita e tranco a porta. A tragédia da minha vida era que eu já sabia que a Joana ia morrer e não pude fazer nada para o evitar. A minha namorada bate à porta e pergunta-me se está tudo bem e só a muito custo repreendo um último soluço antes de lhe responder que sim. Olho para o espelho e assusto-me ao olhar para os meus olhos.

Estamos a jantar e parece que a merda da morte da Joana vai ser o tópico da conversa e eu só me apetece perguntar aos meus pais porque é que, se gostavam tanto dela, não a fizeram para o jantar em vez desta merda de coelho que estamos a comer. Rio-me com esta ideia e todos se calam e ficam a olhar para mim. A minha namorada pergunta:
- Qual é a piada?
- Nada, foi dos nervos - e sorrio-lhe de uma forma que sei que a vai acalmar. O meu pai retoma o seu discurso:
- Bem, eu estava a dizer que amanhã devíamos ir todos juntos ao funeral. Os teus pais certamente que também vão, Renata. - apesar de não ser uma pergunta, ouço-a responder que sim. Vejo o seu entusiasmo quando me pergunta:
- Podemos ir todos juntos amor? - eu estou prestes a virar a mesa ao contrário, mas controlo-me e respondo apenas:
- Claro.
O meu irmão, que tem apenas 11 anos, sorri do outro lado da mesa e eu não sei porque, ou se calhar prefiro não saber.

De manhã, enquanto me preparo para sair de casa olho pela janela e vejo o meu irmão e mais dois amigos aos pontapés e pedradas a um cão vadio. Tenho pena do cão, enquanto penso que há brincadeiras que nunca mudam. Invejo o meu irmão, pela liberdade que a idade lhe confere. Invejo o meu irmão por não ter que ir ao funeral.


Batem à porta e é a Renata, com os pais. Eu não gosto nem da Renata ,nem dos pais dela, nem da casa dela, nem de nada que tenha a ver com ela. Mas vamos-nos casar daqui a um mês porque ela está grávida e não é bom que nos casemos com a barriga a notar-se. Isto foi-me sugerido pelo pai dela e pelo meu, aquele tipo de sugestão que na verdade é uma ordem.
Saímos para a rua, eu e os meus pais e toda a vila está vestida de negro. Perto de 800 formigas, de luto, encaminham-se para a igreja da vila. Chegados a igreja fujo para junto de alguns amigos meus, que fingem não estar bêbados. Eu apenas finjo que me importo.


Nem toda a gente vai caber na minúscula igreja e eu digo que devíamos ficar cá fora, mas o meu pai diz que devíamos entrar e eu olho para ele e agradeço a Deus por não ter ali um machado à mão. A Renata agarra a minha mão à medida que entramos na igreja e a minha respiração acelera e ela pergunta "o que foi" e eu penso "cala-te puta" e não digo nada e começo a suar e aperto mais a mão dela e ela diz baixinho "estás-me a magoar" e eu só vejo a cara da Joana e só ouço o último grito que ela deu e estou quase a desmaiar.


O caixão da Joana está fechado durante toda a cerimónia, porque o funerário não conseguiu fazer nada. Na verdade, nem um cirurgião estético conseguiria fazer alguma coisa. A cara da Joana foi devorada. As autoridades suspeitam que tenha sido por um lobo. E eu podia ter evitado que a sua cara tivesse sido devorada. Mas a verdade é que eu não gostava muito da Joana. A verdade é que eu não gosto muito de ninguém.


Estamos no cemitério e eu vejo o coveiro despejar terra na cova onde a Joana agora vai descansar, sem cara, para sempre. Vejo o coveiro agarrar na pá com força e enterrá-la num monte de terra que está ao lado da cova. E mais uma vez vejo-o a despejar terra na cova. Muita gente chora e lamenta-se e eu só lamento não poder pegar na pá e fazê-los calarem-se todos.


Estamos a caminho de casa e eu penso que a morte da Joana vai estar sempre relacionada com o meu filho, ou filha, que ainda está para nascer. Foi ontem que eu descobri que ia ser pai e foi ontem que a Joana morreu. Foi ontem que eu soube que ia ter que casar com a puta da minha namorada e foi ontem que os meus pais me contaram os pormenores da morte da Joana, fingindo não estarem maravilhados com o macabro. Foi ontem que pela primeira vez em 22 anos eu soltei toda a raiva que tive dentro de mim durante todo esse tempo. Foi ontem que eu devorei a cara da Joana. O mais engraçado disto tudo é que eu nem sei que dia foi ontem.


Estamos no meu quarto, a Renata e eu, e eu olho pela janela. Ela pergunta-me em que é que eu estou a pensar. Como eu não respondo ela diz:
- Gostavas dela.
- Nem por isso. Era-me indiferente.
- Então o que se passa contigo?
- Não sei. Nunca soube. - ela fica confusa e cala-se. Vejo o meu irmão esmagar um pombo com uma pedra, lá em baixo no quintal da casa, quando ela grita:
- Está a dar pontapés! Está a dar pontapés! O bebé está a dar pontapés amor. - e apesar de saber que é parvoíce dela e que ainda é muito cedo, por momentos acredito-me.

Between the buried and me

Entre mim e os mortos
há oceanos de vida,
azul limpido
e salgado.
Peixes de todas as cores.
Cores de todos os peixes.

Tudo é cor.

Entre mim e os mortos
há quedas de água,
cataratas.
Como as dos olhos.
Perco-as de vista.

Tudo cai.

Entre mim e os mortos
há pedras
nas margens dos rios.
Há musgo e lama.

Tudo se afoga.

Entre mim e os mortos
há um lago de água tépida.
Calor imaginário.
Reflexo intemporal.
Reflexo imóvel.

Tudo se mexe.

Entre mim e os mortos
há a água suja dos esgotos.
Há a merda e o cheiro a merda.

Tudo se esgota.

Entre mim e os mortos
há apenas o fio de água
que cai de uma torneira,
fina como a leveza
do meu corpo.
A leveza da minha alma.

Tudo.
Entre mim e os vivos não há nada.

Mãos

Morde-me as mãos - Mão Morta



As minhas mãos molhadas
e pegajosas, quentes,
da tua saliva animal.

A tua língua já conhece
o sabor do sangue,
e as minhas veias
bombeiam.
Bombeiam.

As minhas mãos devoradas
e eu já não sei o que é
o meu sangue e a tua
saliva.

E o meu corpo bombeia
todo o ódio que sentes.
E os cortes que fazes
em ti mesma com
lâminas ferrugentas
só me cortam a mim.

Duas gotas de sangue
no chão.
Vermelho escuro
preto nos azulejos
brancos do chão.
Cheiro a ferrugem.

A tua língua na minha boca
e eu digo:
morde-me antes as mãos.
A tua pele cicatrizada de
encontro a minha e eu digo:
morde-me antes as mãos.
O teu sangue e o meu
espalhado pelos nossos corpos
e eu digo:
devora-me as mãos.

O chão manchado de negro,
vermelho escuro
preto nos azulejos coagulados.
Cheiro a ferrugem.

Os meus cotos cicatrizados
observam-te,
enquanto pela primeira vez
és tu a esfregar os azulejos.

Cega-me os olhos

O pó das casas
todo reunido
no meu alpendre.
Cega-me os olhos,
momentaneamente.
A idade dos problemas
remoída dentro de tudo,
como uma tumba.

O túmulo aberto.
Cega-me os olhos.

A sujidade dos canos
toda pegajosa.
Corroí a minha
canalização.
Cega-me os olhos.
O sol queima-os.

As silvas dentro de mim
crescem, naturalmente
selvagens.

O túmulo aberto
cheira a mofo.

Cega-me os olhos.

Veneno

O sangue estilhaçado
pelo chão tem
o gosto da desgraça.
Os ratos que já
começam o seu festim
não sabem disto.
Eu digo-lhes:
não me roam as costelas.
Eu digo-lhes:
esse bolor já foi meu.
Os ratos, eles não sabem
o veneno que eu sou.

Velhice

O sol branqueia a terra, árida.
O vidro já está gasto,
já é baço.
As linhas que definiam
aquele quintal já estão
ultrapassadas.
Já há ervas daninhas
e urtigas naquele rosto.
As paredes daquela casa
já são mofo.
O sorriso da terra já morreu.

A Voz Dela

A voz dela
ao afastar-se de mim
arrasta um odor incisivo.
O seu queixo a negar
o brilho dos olhos.
A lobotomia do ser
e entender.
A voz dela
ao afastar-se de mim
é o sabor do sozinho.

Brilho

As coisas que brilham
elas são intimamente falsas.
O seu brilho,
posto à prova dentro de mim,
tornou-se intimo.
As coisas que brilham
elas são intensamente minhas.