O que foi dito

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Funeral na vila

O Bernardo encontra-me na rua e diz-me que a Joana morreu. Ele diz-me que o funeral é no dia
seguinte e que a família dela vai estar na capela da vila hoje, até às onze da noite. Ele diz-me que vai lá agora, falar com o Senhor João e a Dona Carla, dizer que lamenta muito. Ele diz-me isto tudo e as lágrimas vêem-lhe aos olhos. Eu abraço-o, sem saber se é isso que é suposto fazer e as lágrimas vêem-me aos olhos, não porque eu gostasse muito da Joana. Eu só lamento é toda esta conversa.

Chego a casa e a minha mãe pergunta-me se vou à capela e eu só tenho vontade de lhe dar um murro, mas a custo digo que não, hoje não. Finjo que não vejo a minha namorada sentada no sofá da sala e vou a correr para a casa de banho, onde me sento na sanita e tranco a porta. A tragédia da minha vida era que eu já sabia que a Joana ia morrer e não pude fazer nada para o evitar. A minha namorada bate à porta e pergunta-me se está tudo bem e só a muito custo repreendo um último soluço antes de lhe responder que sim. Olho para o espelho e assusto-me ao olhar para os meus olhos.

Estamos a jantar e parece que a merda da morte da Joana vai ser o tópico da conversa e eu só me apetece perguntar aos meus pais porque é que, se gostavam tanto dela, não a fizeram para o jantar em vez desta merda de coelho que estamos a comer. Rio-me com esta ideia e todos se calam e ficam a olhar para mim. A minha namorada pergunta:
- Qual é a piada?
- Nada, foi dos nervos - e sorrio-lhe de uma forma que sei que a vai acalmar. O meu pai retoma o seu discurso:
- Bem, eu estava a dizer que amanhã devíamos ir todos juntos ao funeral. Os teus pais certamente que também vão, Renata. - apesar de não ser uma pergunta, ouço-a responder que sim. Vejo o seu entusiasmo quando me pergunta:
- Podemos ir todos juntos amor? - eu estou prestes a virar a mesa ao contrário, mas controlo-me e respondo apenas:
- Claro.
O meu irmão, que tem apenas 11 anos, sorri do outro lado da mesa e eu não sei porque, ou se calhar prefiro não saber.

De manhã, enquanto me preparo para sair de casa olho pela janela e vejo o meu irmão e mais dois amigos aos pontapés e pedradas a um cão vadio. Tenho pena do cão, enquanto penso que há brincadeiras que nunca mudam. Invejo o meu irmão, pela liberdade que a idade lhe confere. Invejo o meu irmão por não ter que ir ao funeral.


Batem à porta e é a Renata, com os pais. Eu não gosto nem da Renata ,nem dos pais dela, nem da casa dela, nem de nada que tenha a ver com ela. Mas vamos-nos casar daqui a um mês porque ela está grávida e não é bom que nos casemos com a barriga a notar-se. Isto foi-me sugerido pelo pai dela e pelo meu, aquele tipo de sugestão que na verdade é uma ordem.
Saímos para a rua, eu e os meus pais e toda a vila está vestida de negro. Perto de 800 formigas, de luto, encaminham-se para a igreja da vila. Chegados a igreja fujo para junto de alguns amigos meus, que fingem não estar bêbados. Eu apenas finjo que me importo.


Nem toda a gente vai caber na minúscula igreja e eu digo que devíamos ficar cá fora, mas o meu pai diz que devíamos entrar e eu olho para ele e agradeço a Deus por não ter ali um machado à mão. A Renata agarra a minha mão à medida que entramos na igreja e a minha respiração acelera e ela pergunta "o que foi" e eu penso "cala-te puta" e não digo nada e começo a suar e aperto mais a mão dela e ela diz baixinho "estás-me a magoar" e eu só vejo a cara da Joana e só ouço o último grito que ela deu e estou quase a desmaiar.


O caixão da Joana está fechado durante toda a cerimónia, porque o funerário não conseguiu fazer nada. Na verdade, nem um cirurgião estético conseguiria fazer alguma coisa. A cara da Joana foi devorada. As autoridades suspeitam que tenha sido por um lobo. E eu podia ter evitado que a sua cara tivesse sido devorada. Mas a verdade é que eu não gostava muito da Joana. A verdade é que eu não gosto muito de ninguém.


Estamos no cemitério e eu vejo o coveiro despejar terra na cova onde a Joana agora vai descansar, sem cara, para sempre. Vejo o coveiro agarrar na pá com força e enterrá-la num monte de terra que está ao lado da cova. E mais uma vez vejo-o a despejar terra na cova. Muita gente chora e lamenta-se e eu só lamento não poder pegar na pá e fazê-los calarem-se todos.


Estamos a caminho de casa e eu penso que a morte da Joana vai estar sempre relacionada com o meu filho, ou filha, que ainda está para nascer. Foi ontem que eu descobri que ia ser pai e foi ontem que a Joana morreu. Foi ontem que eu soube que ia ter que casar com a puta da minha namorada e foi ontem que os meus pais me contaram os pormenores da morte da Joana, fingindo não estarem maravilhados com o macabro. Foi ontem que pela primeira vez em 22 anos eu soltei toda a raiva que tive dentro de mim durante todo esse tempo. Foi ontem que eu devorei a cara da Joana. O mais engraçado disto tudo é que eu nem sei que dia foi ontem.


Estamos no meu quarto, a Renata e eu, e eu olho pela janela. Ela pergunta-me em que é que eu estou a pensar. Como eu não respondo ela diz:
- Gostavas dela.
- Nem por isso. Era-me indiferente.
- Então o que se passa contigo?
- Não sei. Nunca soube. - ela fica confusa e cala-se. Vejo o meu irmão esmagar um pombo com uma pedra, lá em baixo no quintal da casa, quando ela grita:
- Está a dar pontapés! Está a dar pontapés! O bebé está a dar pontapés amor. - e apesar de saber que é parvoíce dela e que ainda é muito cedo, por momentos acredito-me.

Sem comentários:

Enviar um comentário