O que foi dito

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Abri os olhos

Abri os olhos e percebi que estava morto. Olhei à minha volta e vi o meu corpo estendido, na cama, imóvel. Vi o meu corpo e soube que o meu corpo já não era meu, já não o possui-a. Não sei sequer se alguma vez este corpo foi meu.

Vejo tudo desfocado, com a neblina que só um estado avançado de cataractas te pode oferecer.

Não sei se morri ou se me mataram, mas depois de morto isso é indiferente. Reparo que os olhos do meu anterior eu ainda estão abertos, a boca aberta também, numa imagem um pouco absurda, mas que não me dá vontade alguma de rir. Olho para esta cara e para este olhos e

A neblina desaparece e a claridade desaparece e este momento desaparece

estou a olhar para mim há três dias atrás, sentado no café. Joga-se cartas e alguém pede uma mini, e eu tenho o Ás de trunfo na mão. No entanto tenho uma manilha seca. Faço sinal ao meu colega e ele diz-me que não tem o Ás desse naipe. Acendo um cigarro.

Tenho 8 anos e a minha mãe não me dá o Action Man que eu quero, e eu faço birra, e choro

Caem-me lágrimas, como se eu as pudesse verter

e choro e choro. Ela diz que não vai dar e eu só penso que a minha vida é tão injusta e ela não é mais minha mãe e eu só quero morrer.


o padre pergunta-me se eu aceito a Isabel para ser a minha mulher, na pobreza e na riqueza, na saúde e na doença, até que a morte nos separe. Eu olho para trás e a minha mãe está a sorrir e quase a chorar, e está tão feliz, tão feliz, tão feliz. E o vazio dentro de mim diz: Sim.

o meu parceiro joga o Ás de paus, e como eu estou seco a paus, jogo a manilha. Às vezes consegues safar uma manilha. Alguém fala da bebedeira que tinha no sábado passado.


estou no trabalho e uma colega fala-me da “sopinha que fez ontem”, da forma como “cortou uma cenourinha”, descascou “uma cebolinha”, e a certo ponto perco-me, mas tenho a certeza de que ela ainda está a falar de legumes. Aceno-lhe que sim, murmuro “eu gosto de sopa”, isto tudo enquanto faço o esforço de olhar para ela. A única razão pela qual ainda consigo manter o meu olhar na sua cara, enquanto ela fala de sopa e puré de batata e arrozinho, é porque os meus olhos

Estão desfocados. Com a neblina que só um estado avançado de cataractas te pode oferecer.

Vejo a Isabel entrar no quarto e chamar por mim, ela diz que o pequeno almoço está feito. É domingo de certeza. Só ao domingo é que ela prepara pequeno almoço para nós. Ela pensa que isso é romântico e eu penso que não me importava muito com isso, desde que comesse.

Os gritos dela, ao fitarem os meus antigos olhos, vítreos, fazem-me acreditar no amor que ela sentia por mim. Sei que se a situação fosse inversa, eu manteria toda a calma.

O meu ex-corpo na morgue e o médico legista e o médico estagiário olham para dentro do que eu já fui, e tiram orgãos, e fazem testes, e esvaziam o conteúdo das tripas e esvaziam o que eu já fui. E eu identifico-me com este corpo, vazio.

A autopsia é inconclusiva. Fecham o torso em Y, cosem a pele, a carne. A agulha entra e sai da pele, da carne. Este corpo não é mais do que um desperdício de linhas, de pele, de carne. Este enorme urso de peluche está prestes a ser enterrado.

Os meus pais e a minha mulher (será que ainda são meus pais e minha mulher, depois da minha morte?) choram e uma enorme fila de pessoas cumprimenta-os, diz-lhes que lamentam muito, dão-lhes pêsames. Aposto que isso faz toda a diferença para eles. Vejo o meu tio paterno, com quem deixei de falar há 6 anos, aquando da morte do meu avó. Vejo uma ex-namorada, a qual traí, e que me disse que me odiava e que esperava que eu morresse. Vejo pessoas que não conheço, que sei que os meus pais não conhecem, que sei que a minha mulher não conhece. Todas elas lamentam muito a minha morte. Todas elas à noite já não se lembrarão de mim.

Uns amigos meus falam de como eu era boa pessoa, um bom amigo. Dizem que são sempre os melhores que partem. Um diz:
-Se bem que estava sempre a trair a mulher.
- É. Bem boa a mulher dele.
- Pois é. Eh pah, mas um gajo que traí tantas vezes a mulher não pode ser assim tão boa pessoa.
- Pois. Se calhar tens razão. Pah, eu nem sequer era assim tão amigo dele. Tomava-mos um cafézinho às vezes.
- Pois, eu também
- Vamos embora? Daqui a pouco começa o Benfica.
- 'Bora.


O caixão é aberto, e lá está o corpo, sereno, com um estranho sorriso nos lábios e os olhos fechados

A névoa dissipa-se

o funeral do meu avó é a recordação mais triste que tenho. Eu gostava muito do meu avó e custou-me muito ver o meu tio tão preocupado com as partilhas. Nessa altura pensei: “nunca mais lhe falo”.
Chorei muito ao ver o meu avó, pela última vez, deitado no seu caixão, com um sorriso nos lábios. A única pessoa de quem eu realmente gostei foi do meu avó, porque ele me compreendia. Na altura assustei-me com aquele sorriso, mas agora percebo

A névoa retorna

o que os médicos não perceberam. Eu fui o segundo caso na minha família em que a autopsia ao corpo foi inconclusiva. O primeiro foi o meu avó.

e o corpo afinal é meu

Eles não perceberam que o cansaço foi a causa da morte.

o meu sorriso torna-se uma gargalhada ao ouvir a terra cair por cima da tampa fechada do caixão.

Fechei os olhos e percebi que estava vivo.

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